Fernando Catroga
Dentro do horizonte historicista do século XIX, as práticas legitimadoras do novo Estado-Nação exigiram uma reinvenção do passado como instrumento de produção (e reprodução) de uma nova memória nacional. A sua finalidade última aproximava-se da função religiosa; em nome da normatividade da herança, visava-se religar os indivíduos à volta de símbolos (“grandes homens” e “grandes acontecimentos”) encarnadores do sentido da História, em ordem a reforçar-se, mediante rituais, um novo consenso social e nacional. Deste modo, a nova festa cívica devia conjugar a Comemoração com a realização de Congressos e de Exposições (Augusto Comte), criando “acontecimentos-espetáculo” capazes de cimentar o atomismo social e filiar e interiorizar, subjetivamente, uma compartilhada consciência histórica e solidária.
Todas as grandes comemorações (“literárias”, “religiosas”, políticas”, e, no caso português, com um particular relevo para as dos Descobrimentos) foram animadas por esta intenção: o passado glorioso devia servir de paradigma para a superação da decadência contemporânea, perspetiva que o salazarismo transformou em promessa que o presente já estaria a redimir. E esta estratégia passava pela restauração da grandeza imperial perdida. De facto, outra não é a lição que se extrai da comparação das várias comemorações centenárias em que os poderes mais investiram, a saber: a de Camões (1880), maneira indirecta de celebrar Vasco da Gama e a viagem à Índia; a do Infante D. Henrique (1894); a da Índia (1897-1898); a de Ceuta e de Afonso de Albuquerque (1915); a da Independência do Brasil (1922); a de Camões e de Vasco da Gama (1924); a do Duplo Centenário (1940); a da descoberta da Guiné (1946); a da tomada de Lisboa aos mouros (1947); a de Mouzinho de Albuquerque (1955); a do Infante D. Henrique (1960).
No fundo, tratava-se de colocá-las ao serviço da reprodução de mitos fundadores e refundadores, de modo a que, em vez de se assistir a uma “manifestação do saudosismo do passado”, se demonstrasse, no espaço público, o valor e as “possibilidades das gerações de hoje”, num “ato de fé nos destinos da Pátria” (V Centenário da Morte do Infante. 1460-1960, p. 14). Em suma, enquanto celebrações consensualizadoras, as comemorações são ritualizações da História. E, como em todo o rito, movimentam oficiantes e participantes, pondo em cena, num tempo e num espaço revestidos de alguma sacralidade cívica, um espetáculo que, como alternativa ao caos, simboliza a ordem ideal e o sentido da História que nele se procura legitimar. Logo, elas também integram os participantes e os espectadores através de desfiles e de efeitos visuais, em ordem a captarem uma maior adesão popular possível. De facto, nestes rituais, a sacralização cívica do espaço (na caso português: Jerónimos, Sagres, Batalha, Castelo de Guimarães, etc.) foi inseparável da de um calendário cívico ritmado pelos aniversários (da morte e do nascimento) dos heróis paradigmáticos do novo Olimpo, ou pelas datas dos “grandes acontecimentos” que eles encarnavam. Ora, a par de grandes escritores (Camões, Alexandre Herculano, Garrett, etc.), poucos foram os escolhidos que não estavam, direta ou indiretamente, ligados à gesta dos Descobrimentos e do Império. Daí que, por todos, a síntese dos novos deuses cívicos, que elas consagravam, tenha sido encontrada em Camões, cume de um panteão imaginário que, por ser necessário ao cimento do novo Estado-Nação, atravessou vários regimes políticos, como os casos da mitificação cívica do Poeta e do Infante D. Henrique cabalmente revelam.
Em certo sentido, as comemorações desenrolaram-se, desde o século XIX, à luz de uma visão lusocêntrica e eurocêntrica do mundo, contra a qual começaram a insurgir-se os que contestam a possibilidade de se poder, omniscientemente, controlar e decretar um sentido único para a História, apresentando, como alternativa, a evidência de que existe uma pluralidade de caminhos e de culturas. Esta nova perspetiva exige uma hermenêutica da descentração que respeite a policentricidade histórico-cultural. E todas estas razões explicam que o discurso oficial, após o 25 de Abril de 1974, tenha saneado o vocabulário da apologética anterior – «missão», «civilização ocidental», «heroísmo», «epopeia», etc. – e que denotem algum pudor no que se refere à própria utilização da palavra «Descobrimentos». De facto, começou-se a falar, com mais frequência, na necessidade de as Descobertas serem evocadas «no contexto das relações com os países para cuja formação e integração universal» contribuíram, modo cauteloso de afirmar que, afinal, a vocação histórica de Portugal não teria sido o Império, mas civilizar e elevar os colonizados à sua futura independência. Entende-se, assim, que as jornadas comemorativas tenham passado a privilegiar mais os Congressos e as Exposições (em detrimento de espetáculos cívicos, que já não mobilizam), celebrando-se o “encontro” de culturas, isto é, a comemoração da “descoberta” do outro. O que não deixa de ser, igualmente, um inequívoco sintoma da crise das formas tradicionais de se legitimar, reproduzir e representar a memória nacional, que o aproveitamento historicista do passado foi construindo e povoando de mitos e heróis desde o século XIX.
Fernando Catroga
(Lisboa,19/03/2000)