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Nós e os Outros: os equívocos de Fátima
Em plena Revolução Francesa, entre 19 e 26 de agosto de 1789, a Assembleia Constituinte decide que o texto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão deve ser discutido e votado artigo a artigo. Comemoram-se, este ano, exatamente 230 anos sobre esse acontecimento.
Fátima(1) Bonifácio, comentadora e historiadora, revela, num artigo publicado no jornal “Público”, no passado dia 6 de julho, uma enorme falta de consciência histórica, ignorante que mostra ser do passado de que é herdeira. Começa por afirmar que ciganos e africanos não partilham as mesmas crenças religiosas e valores morais dos restantes portugueses, já que nem uns nem outros descenderiam dos Direitos Universais do Homem decretados pela Revolução Francesa de 1789.
Como não, se a grande maioria dos ciganos e africanos são cristãos e comunicam em português? Como não, se uma das características dos ciganos é a sua adaptabilidade aos contextos locais. Alguém acredita que, passados 500 anos da sua instalação em território nacional, não se teriam aculturado? A outra língua que também usam para comunicar entre si, o caló, mistura à língua original, derivada do sânscrito, inúmeras palavras portuguesas e espanholas. Quanto aos africanos, comunicarem (também) noutras línguas – sejam elas os crioulos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, o Umbundo, o Kimbundu, o Kikongo, o Nganguela, o Angone, o Citewe, o Macua, o Suaíli… – isso não os impede de partilharem os valores morais dos restantes portugueses. Tal como o facto de os imigrantes portugueses em França, nos EUA ou no Reino Unido comunicarem em português entre si não os impede de partilhar os valores morais da população desses países.
E o que dizer do argumento de que a causa dessa não partilha de valores se radica na não descendência dos Direitos Universais do Homem decretados pela Revolução Francesa? O que Fátima Bonifácio denomina Direitos Universais do Homem nada tem a ver com a Revolução Francesa. Deve querer referir-se à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, designação correta do documento votado em 2 de outubro de 1789 pela Assembleia Nacional Constituinte. A Declaração Universal dos Direitos do Homem é um documento adotado pela ONU em 10 de dezembro de 1948 que, como o próprio nome indica, sendo de aplicação universal, não contempla discriminações.
Quanto à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, podemos interpretá-la à luz de um contexto mais reduzido ou mais alargado. Se mais reduzido, as suas premissas destinar-se-iam apenas aos cidadãos franceses, o que encerraria a discussão – a ser assim, estaria automaticamente excluído quem o não fosse. Logo, também os portugueses não fariam parte do grupo dos eleitos. Se mais alargado, nada no documento aponta para a exclusão de determinados grupos, não existindo nenhuma referência a grupos étnicos.
Terminemos com uma citação de António Sérgio: “ousaremos perguntar desde já o seguinte: o pretender justificar-se pela unidade de raça não é coisa estrambótica perante a história num povo cujos processos de formação e expansão se caracterizaram sempre pela mestiçagem?”
(1) Nome próprio de origem árabe. Assim se chamava uma das filhas de Abul Alcacim Maomé ibne Abdalá ibne Abdal Mutalibe ibne Haxim, vulgarmente conhecido como Maomé.
Miguel Monteiro de Barros
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