Fernando Rosas
Tenho para mim que o futuro trabalho historiográfico em torno do “25 de Abril” e do processo revolucionário há-de ter que saber lidar com duas ordens de preconceitos político-morais que ainda hoje condicionam fortemente as abordagens ao tema. O primeiro, tenta demonstrar que o “25 de Abril” foi um passo “desnecessário”, “precipitado”, motivado por “intransigências” várias que teriam impedido o marcelismo e o seu chefe de levar a bom porto a “transição pacífica” para a democracia, precipitando o país no “caos”.
O primeiro, tenta demonstrar que o “25 de Abril” foi um passo “desnecessário”, “precipitado”, motivado por “intransigências” várias que teriam impedido o marcelismo e o seu chefe de levar a bom porto a “transição pacífica” para a democracia, precipitando o país no “caos”.
Eu creio, pelo contrário, que a historiografia demonstrará que a falência histórica da corrente reformista no interior do Estado Novo – o marcelismo foi a última das oportunidades perdidas – há-de buscar-se em circunstâncias de ordem interna que se manifestaram na incapacidade do regime e das suas elites, entre 68 e 74, desatarem o nó górdio da guerra colonial e, com isso, viabilizarem um processo de transição para a democracia. O golpe militar que se sucedeu foi o fruto desse impasse, e as particularidades que revestiu ajudaram ao despoletar de uma verdadeira situação revolucionária que mudaria a face do país e marcaria duradouramente a génese e o futuro da democracia portuguesa.
O segundo preconceito tem a ver precisamente com o extraordinário movimento social e político que então se verificou, apresentando-o, ao gosto dos vencedores da conjuntura, como uma espécie de conspiração sombria para instalar o caos ao serviço de propósitos ocultos. As teses conspirativas, elas sim, “ocultam” o que de essencial teve a Revolução portuguesa e a marca genética que deixou: a alteração histórica das relações de força entre o capital e o trabalho a favor deste último e dos mais pobres; a destruição, por ação dos movimentos de massa, do essencial do aparelho repressivo do anterior regime; a conquista das liberdades públicas na rua, muito antes de o poder as reconhecer e outorgar; a ocupação das terras dos grandes agrários pelos assalariados rurais do Sul; a ocupação das casas devolutas pelos moradores das barracas ou sem casa; o lançamento dos fundamentos do Estado Providência e as medidas de igualização da distribuição do rendimento; a intervenção do Estado na economia e as nacionalizações.
Sabe-se qual foi o destino, adequado ou não, de muitas dessas “conquistas” e realizações. Pode-se e deve-se discuti-lo. Mas o que parece certo é que sem a subversão que elas representaram, sem a explosão de intervenção e participação de largas massas da população que elas foram, sem o susto ou a esperança sem paralelo que constituíram, a democracia portuguesa nunca seria o que foi e o que, em muitos aspetos, persiste em ser.
É isso, a meu ver, que se comemora neste 25º aniversário do “25 de Abril”: o momento histórico singular e efémero em que os mais fracos pensaram poder conquistar o céu.
Fernando Rosas
(Lisboa,18/02/1999)