Paulo Guinote
«Hoje, a nossa escolaridade é de amnésia planificada»
(Georges Steiner, Elogio da Transmissão, 2004, p. 46)
Este texto pode ser interpretado como um lamento de tipo corporativista, de alguém que protesta perante a menorização do espaço reservado nos currículos nacionais para a sua disciplina de formação e eleição. Ou como sinal da tristeza perante o completo estilhaçar da própria formação de nível superior em História, transformada num qualquer amontoado de créditos, colhidos aqui e ali, num mosaico muito pós-moderno, onde tudo se baralha e mistura, sem sequência necessária, como se tudo fosse intermutável e relativo.
Mas não. Essa interpretação mais do que simplista e redutora, desprezaria todo o contexto que enquadra esta tendência atual dos poderes (político e económico mas também cultural) para desaconselharem de forma ativa o recurso à memória como recurso essencial da experiência humana para analisar o presente e encarar o futuro.
Não que a História contenha, nos seus movimentos aparentemente cíclicos, a resposta para todos os dilemas que enfrentamos, mas porque a Memória (individual, coletiva) é essencial para que os indivíduos tenham a capacidade de se posicionar no mundo e agir com base numa reflexão crítica, através do conhecimento do trajeto que fizeram até ao momento que vivem.
A redução da História nos currículos do Ensino Básico e Secundário a disciplina menor, quase acessória, com um programa desmesurado para o tempo disponível para o lecionar, é apenas o sinal mais visível de uma tendência dos poderes do momento, deste momento, para tentarem apagar nas novas gerações o lastro do conhecimento de um passado que, conhecido para além de um fio ténue e do que é anedótico, poderia colocar em risco a adesão acrítica e não informada aos slogans vazios de conteúdo com que são quotidianamente bombardeados.
É verdade que a História não tem uma utilidade prática evidente: não ensina a manejar uma máquina registadora num qualquer hipermercado e não reduz o esforço do trabalho numa obra pública de construção civil. Também não ajuda a acelerar o processo de criação de uma empresa-fantasma destinada a colher subsídios e morrer, nem mesmo é condição vantajosa para se progredir na estrutura local ou nacional de uma agremiação partidária do centrão governativo.
Mas a História, enquanto disciplina que pretende transmitir uma Memória do que nos é ancestral, levar-nos a conhecer o que outros experimentaram, o que sofreram e como o ultrapassaram, assim como tudo aquilo que funcionou bem e como foi feito, é essencial para formar cidadãos informados e capazes de emitir opiniões que não sejam condicionadas apenas pelos apelos mais imediatos.
De certa forma, a História e a Memória ajudam a criar um modelo de cidadão indesejável nos tempos que correm, porque será necessariamente, pelo menos em parte, um Homem Velho por ter dentro de si o conhecimento, mesmo que parcelar e parcial, do passado. E os novos tempos querem um Homem Novo, o mais vazio possível para que seja possível impregná-lo com tudo aquilo que a propaganda de hoje quer fazer passar como sendo os valores essenciais da modernidade tecnológica, mas que mais não é do que a redução dos indivíduos a autómatos.
É Ricard Sennett (A Cultura do Novo Capitalismo, 2007, pp 14-15) que escreve que nas condições instáveis e fragmentárias em que vivemos só um determinado tipo de ser humano está em condições de prosperar e que um dos desafios a que deve responder é o da «renúncia», que se traduz numa «forma de desprender do passado».
O Homem Velho terá sempre a capacidade de fazer comparações e, nessa operação, aperceber-se da pequenez das figuras que hoje parecem agigantar-se apenas pela sombra que projetam devido aos holofotes que lhes colocaram por trás. O Homem Novo tenderá sempre para ser crédulo e aceitar o que lhe é dado, porque nada tem de seu e tudo recebe de forma acrítica. O traço de personalidade típico do consumidor ávido de novidades, que «deixa de lado bens antigos, mesmo quando são perfeitamente utilizáveis» (Sennett).
Perante isto, a reação por parte dos vultos mais sonantes ligados à escrita e ensino da História nas Universidades tem sido a mais débil possível. E quase sempre numa perspetiva de defesa e nunca de afirmação pela positiva. As razões são evidentes: alguns preferem lutar em outras arenas, usando a História de forma instrumental ao serviço de estratégias pessoais de poder, apenas como pretexto e recurso para a sua retórica; outros, remetem-se a uma posição defensiva, percecionando a aspereza dos tempos e preferindo garantir uma posição segura, dentro das suas possibilidades, do que erguer-se e fazer notar demasiado a sua voz, em especial se for dissonante. À sua maneira, todos são cúmplices de um silêncio que se abate sobre a nossa História e Memória coletiva, entalada entre o apelo do concurso televisivo e os interesses dos negócios dos subsídios para projetos que desaconselham posturas muito críticas em relação ao status quo.
Mas se mesmo os androides anseiam por sonhar com um passado, como se sentirão, a médio prazo, estes humanos a quem querem recusar toda uma Memória?
Paulo Guinote