Rui Bebiano

A perceção do presente vive saturada de referências ao papel dos jovens e à valorização da própria ideia de juventude. Todavia, se excetuarmos a publicação, em 1994, da “História dos Jovens no Ocidente” dirigida por Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt, notamos que a generalidade das historiografias se tem mantido afastada do tema. A explicação deste paradoxo não é difícil de vislumbrar: trata-se de um processo relativamente recente, e todos sabemos como a história recente tem sido injustamente tomada como não-história. Ao mesmo tempo, a sua compreensão requer abordagens de natureza transdisciplinar, difíceis de desenvolver dentro de um universo do conhecimento dominado ainda, apesar dos indícios sonoros de mudança, por uma excessiva compartimentação dos saberes.

A afirmação vitoriosa da juventude é, na longa duração, um fenómeno relativamente novo. Vemo-lo com facilidade. Basta remexer nas recordações pessoais, nos retratos de família, em velhas cartas que ainda guardamos, para recuperarmos a memória de um tempo no qual parecer mais velho, “ser adulto”, era condição de uma sociabilidade integradora, apresentada como positiva e modelar. Hoje, inversamente, é “parecer jovem” que assegura um estatuto de notoriedade. O “eterno jovem” deixou de ser classificado sistematicamente como irresponsável, como elemento perturbador a “meter na ordem”. Elogia-se-lhe agora o dinamismo, o entusiasmo, a capacidade para criar e para jogar com o risco. Instituições públicas e empresas tudo fazem por incluir um número importante de jovens nos seus quadros, em particular naquelas áreas vocacionadas para a construção da sua imagem pública. Observando a génese e a afirmação deste comportamento, perceberemos melhor como as coisas têm mudado.

O reconhecimento social da infância e da adolescência iniciou-se, como “descobriu” Philippe Ariès há perto de quarenta anos, apenas no século XVIII, no quadro de uma economia mercantil em fase de expansão e dentro da qual cada um deveria participar num processo aberto de troca de bens e de compra e venda de força de trabalho. A família de tipo antigo, fundada na autoridade paterna, numa noção alargada de linhagem e no dever de conservação do património, começa então, sobretudo no território social da burguesia, a ceder rapidamente o lugar à família conjugal, dentro da qual a criança e o jovem se transformavam num investimento, num capital que era preciso valorizar, e que ampliava ou diversificava as outras formas de património. O crescimento demográfico e a concentração urbana iriam acentuar as condições desta transformação.

A educação assumiria então um papel crucial, em articulação com o trajeto que confirmou a posição hegemónica da burguesia. Senhora do mundo, esta não deixará, num crescendo que atravessará todo o século XIX, de proceder ao cerco institucional daquela que passara agora a ser uma fase cada vez mais específica da vida, criando as condições para uma formação profissional crescentemente necessária e integradora. Mas visando igualmente o enquadramento progressivo desse sector social, distanciado, no seu processo de definição identitária, da supervisão da família, do senhor ou da comunidade. Um grupo que se tornava necessário enquadrar e controlar, no sentido da anulação do potencial subversivo suscitado por essa marginalidade social e pela sua ténue articulação com o sistema económico dominante. As “máquinas disciplinares”, como chamou Foucault às instituições produzidas pelo Estado para dominar o indivíduo e a sociedade, deveriam cumprir essa função.

Será através dos instrumentos e dos ambientes necessários a esse enquadramento e à sua ampliação a um número cada vez maior de jovens, que, num processo que prosseguirá sensivelmente até aos meados do século XX, este sector social se irá autonomizar. O processo recorrerá principalmente a três dessas máquinas. A primeira, a escola, nas suas diversas formas e distintos graus, tornar-se-á instrumental na definição de uma nova “fase da vida”, correspondente a um tempo de aprendizagem sucessivamente alargado. A segunda, a organização militar, desempenhará um papel de crescente importância, em particular após a introdução da conscrição e da acentuada diminuição do tempo de serviço. A terceira máquina funcionará na dependência das organizações confessionais, que encontraram aqui um campo imenso de doutrinação e influência. Escola, exército e igreja constituíram-se assim como responsáveis principais pelo processo de identificação social e política da juventude, retirando ao mundo familiar um número significativo de pessoas em idade ativa e colocando-as em espaços delimitados, dentro dos quais foi possível o desenvolvimento formas de sociabilidade e de práticas culturais autónomas.

Uma nova fase emergirá, entretanto, nas décadas de 50 e 60. Consumou-se nesta altura, nos países mais desenvolvidos e suas semiperiferias, essa rutura de importantes sectores juvenis em relação ao vínculo familiar original, possibilitando a afirmação de experiências de vida crescentemente autónomas e bastante livres. A valorização desta etapa da vida, dos seus valores, dos seus hábitos e gostos, dos modelos que ia criando, suscitava e consolidava – em larga medida por influência de um desenvolvimento associado do consumo, da cultura de massas e da capacidade dos media – um destaque sem precedentes da condição juvenil.

Esta importância tornou inevitável um confronto com os sectores da sociedade incapazes de entenderem, e menos ainda de aceitarem, as mudanças em curso. De início de forma incipiente, na expressão dessa “rebeldia sem causa” fixada no filme de Nicholas Ray protagonizado por James Dean. Depois, através da construção de formas alternativas de vida ou de instantes de libertação, já mais coletivos, trazidos pelos ambientes do primitivo “rock and roll”. E nos anos seguintes, de maneira sistemática, através da produção de “utopias concretas”, como as procuradas pelo movimento “hippie” e pelos “provos”, ou por causas como o combate militante pelos direitos cívicos dos negros, pela emancipação das mulheres, contra os colonialismos, ou contra a guerra do Vietname, alimentadas por um ativismo em larga medida de origem juvenil ou influenciado pelos meios universitários que constituíam o seu núcleo mais dinâmico.

A radicalização dos movimentos estudantis, associada ao desenvolvimento e destaque da esquerda radical, tal como, já nos anos 70, o aparecimento de atitudes estéticas e de comportamentos relacionados com o consumo da música, irão fundir-se com uma autonomização sem precedentes do território da juventude e a assunção de uma lógica de rutura com a ordem estabelecida. Ao ocupar-se da dimensão anti disciplinar das formas de protesto que apareceram na altura, Stephens parte do seu enraizamento no 3 movimento estudantil para sublinhar o potencial subversivo que continham, considerando que “o ‘trabalhador’ como elemento revolucionário” se encontrava, em determinados ambientes, a ser substituído “pelo ‘estudante’, que tomou o lugar do proletariado”. Statera considerou-os como “emancipados tutelados”: um sector da sociedade conheceria de forma massificada, pela primeira vez na história, a disparidade entre a maturidade física e o desenvolvimento cognitivo – à qual teria correspondido um tipo de emancipação cultural desenvolvida especialmente a nível subjetivo – e a tutela das instituições escolares e da família, constituindo, em tal contexto, um segmento dinâmico mas excluído do acesso ao poder e do controlo dos padrões culturais e sociais, flutuando fora das estruturas sociais determinadas pela organização da produção. Numa situação de instabilidade que reforçava o seu elevado potencial subversivo. Melucci destacará, por sua vez, o facto de ter sido ao longo daquele período que os estudantes universitários, apesar de provirem em regra de segmentos economicamente privilegiados, se tornaram os primeiros a perceber as contradições do sistema e a mobilizarem-se de forma sistemática e ativa contra ele.

Parece indiscutível que o movimento estudantil dos anos 60, e o universo político e cultural que o envolve, potenciarão, particularmente após o Maio de 68, essa nova associação da juventude a um “estado de rutura” de intenso valor subversivo – particularmente visível em Portugal entre a “primavera marcelista” e o biénio revolucionário de 74-75 – do qual, ao longo das últimas décadas, continuámos a captar ondas de choque. Fixa-se então a inversão de valores que recusava a deferência pelo “velho” em nome de um “novo” supostamente irreversível, afirmado através de formas culturais próprias, completamente desvinculadas do passado. Parece-me que as transformações vividas mais recentemente, em particular durante as décadas de 80 e de 90, sendo muitas vezes associadas ao retorno, que de facto aconteceu, de um conjunto de valores que atribuem grande importância ao restabelecimento do papel funcional das hierarquias, bem como à afirmação de uma “viragem cultural”, marcada pelo individualismo, não alteraram no essencial essa atração, de conteúdo potencialmente dinâmico, pelo “novo” e pelo “jovem”. Criada uma cultura relativamente homogénea, à margem da cultura dos adultos e como uma inversão ou uma derisão desta, capaz de reagrupar os jovens num universo construído à medida das suas necessidades e dos seus desejos, não mais seria possível voltar atrás.

Este trajeto de definição da juventude como condição autónoma tem vindo a ser observado a partir de dois grandes quadros de análise. O primeiro pondera a constituição da juventude como conjunto constituído por indivíduos pertencentes a uma dada “fase da vida”, prevalecendo o reconhecimento da sua especificidade a partir da busca dos aspetos mais uniformes e homogéneos que a caracterizam. Existiria assim uma “cultura juvenil” específica, associada a uma unidade grupal definida em termos etários. Dentro desta perspetiva – que possui as suas virtualidades operativas – é fácil incorrer em generalizações, como aquelas que tendem a tipificar os comportamentos juvenis e as suas diferenças a partir de quadros geracionais ancorados num tempo histórico curto. O recurso à noção de “conflito de gerações” torna-se então um processo que possibilita explicações interessantes, mas parciais ou pouco dinâmicas. Procura sublinhar as ruturas, ou elementos identitários transitórios, em vez de identificar a coerência e o sentido mais geral dos processos de mudança.

Um segundo quadro de análise considera a juventude a partir do seu entendimento como agrupamento social necessariamente diversificado, perfilando-se diferentes culturas juvenis em função de “diferentes pertenças de classe, diferentes situações económicas, diferentes parcelas de poder, diferentes interesses, diferentes oportunidades ocupacionais, etc.” (J. Machado Pais). É na consideração deste segundo sentido que, como vincou Pierre Bourdieu – “la jeunesse n’est q’un mot” – se pode tornar abusiva a reunião, sob o mesmo conceito de juventude, de universos sociais que pouco ou quase nada têm de comum: não existe juventude, existem juventudes. Em consequência, o que tem acontecido quando em algumas ciências sociais se parte deste ponto de vista é precisamente o acentuar de uma observação parcial, por vezes efetuada “in vitro”, de determinados segmentos sociais. Um trabalho muitas vezes produtivo e estimulante, mas que carece de abordagens mais abrangentes e inter-relacionadas, ou de estudos comparativos mais completos, capazes de situar essas culturas num contexto de desenvolvimento analítico mais amplo e integrado. É aqui que, segundo me parece, a história deve intervir de maneira decisiva.

O interesse da história pela condição juvenil precisa, pois, de um desenvolvimento urgente. Este poderá atenuar a clivagem entre estas duas leituras, integrando-as em formas de interpretação da existência juvenil cada vez mais completas e devendo apontar em três direções que passo a anotar: 1) o reconhecimento dos quadros mais gerais e alongados de transformação da condição juvenil, de forma a conhecer e a entender o conjunto do processo; 2) a captação dos fatores de mudança e de continuidade, para que se não sobrevalorizem diferenças geracionais que podem ser, afinal, aspetos distintos de uma mesma tendência; 3) um mais completo entendimento do presente, adensando o conhecimento do enorme destaque que a juventude atualmente possui e percebendo de maneira mais completa o universo que todos os dias partilhamos com os nossos colegas, com os nossos alunos, com os nossos filhos.

Como se vê, existe muito trabalho por fazer e para fazer.

Rui Bebiano
(Coimbra, 23 de Julho de 2002)

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