Paulo Guinote

Os ataques ao chamado “paradigma científico moderno”, racionalista, empirista e confiante na possibilidade de uma metateoria, ao longo da segunda metade do século XX, deixaram-nos, na área das Ciências Sociais e Humanas mais do que na das Ciências Físicas e Naturais, perante uma aparente descrença na validade de um conhecimento “objetivo” e uma progressiva multiplicação dos “campos de saber”, em especial a partir da fragmentação das disciplinas mais tradicionais.

A multiplicação de novas “disciplinas” ou mesmo “ciências”, organizadas em torno de saberes crescentemente hiperespecializados, dotadas de metodologias tidas como específicas e de um vocabulário cada vez mais distinto do adotado pelas disciplinas/ciências/campos de saber próximos ou com origens comuns, ultrapassou largamente as ambições iniciais do “pós-modernismo” de crítica às metateorias totalitárias herdadas do cientismo otimista do século XIX.

Com efeito, atingimos um ponto em que, apesar de apelos a uma “abertura das Ciências Sociais”, o que constatamos é, na prática, a defesa acérrima das posições conquistadas pelos protagonistas destes novos campos de saber dotados de novas designações (nomear algo funciona como forma de domínio sobre esse “território”), mais ocupados em definir de forma cada vez mais sofisticada a sua própria identidade, em distinguir-se dos “outros” e em erigir o seu próprio saber naquilo que se pode considerar como um “regime de verdade”.

Por efeito perverso de alguma cegueira, as velhas metateorias de génese oitocentista foram ultrapassadas por novíssimas “microteorias” tão preocupadas como aquelas em defender a sua “verdade”, em excluir os que a ela não aderem, em combater todos os que são vistos como “adversários” ou mesmo “inimigos” e não em criar pontos de contacto e de combinação de esforços para obtenção de objetivos total ou parcialmente comuns.

A vertigem de novidade chega ao ponto de, no afã de criar um espaço só “nosso”, as designações dos novos campos de saber se tornarem quase impossíveis e caírem numa sucessão de “pós-“ isto e aquilo como é o caso de autoras que se definem como “pós-modernistas”, “pós-estruturalistas” e “pós-feministas” sem perceberem todas as implicações desta combinação ou daqueles investigadores que optam por ser “pósestruturalistas”, “pós-marxistas” e “pós-liberais” (Raymond Morrow e Carlos A. Torres na sua obra Teoria Social e Educação).

Nomear um campo de saber, encontrar-lhe uma genealogia híbrida, alinhar algumas considerações conceptuais e metodológicas, criar um micro-vocabulário de que só os iniciados conheçam a verdadeira chave de acesso, aqui temos a fórmula para encontrar algum sucesso na luta pela criação de um novo “campo de saber” e entrar na liça de negociar as novas “fronteiras disciplinares”.

A esta situação, um pouco por analogia, eu chamaria de “nacionalismo disciplinar” pois mimetiza de alguma forma o esforço das novas nações na construção de uma identidade própria, reforçando os traços identitários específicos por oposição a tudo o que é considerado exterior – definição de um território, uma linguagem, uma população e, inclusivamente, uma (nova) fé.

Por ironia, os novos “campos de saber” tornaram-se “campos de poder” (um pouco à maneira do conceito de Bourdieu) e, como consequência, as estratégias de afirmação passam pela luta contra aquilo que podemos chamar disciplinas ou “ciências-mãe” das quais se emanciparam e contra as disciplinas ou ciências com as quais apresentam maiores afinidades/fronteiras.

Aliás, de forma mais concreta, a situação presente assimila-se muito ao que Amin Malouf chama “identidades mortíferas”, ou seja, identidades que se fecham sobre si próprias e procuram criar identidades monolíticas, homogéneas e intolerantes para com a diferença, rejeitando tudo o que conteste o seu dogma. A semelhança para com a afirmação das Nações-Estado ao longo da época contemporânea é menos disparatada do que à primeira observação nos pode parecer: a delimitação de um “território” de investigação, a construção de uma “linguagem” própria, a mais ou menos explícita ou sofisticada elaboração de “dogmas” (podemos chamar-lhes “conceitos” sem alteração da sua função prática) a que os indivíduos aderem permitem a identificação de uma “população” – os “nossos” – por oposição aos “outros”, com quem se podem estabelecer diversos níveis de relação – aliança tática, animosidade latente ou oposição declarada. – no desenvolvimento de estratégias de crescimento e dominação.

Poderão dizer-me que isto não passa de um exagero, de uma distorção da realidade, que nada se passa verdadeiramente assim, mas qualquer revisão minimamente atenta das novas tendências das Ciências Sociais e Humanas a nível (inter)nacional permite detetar um evidente esforço pela definição de identidades disciplinares por oposição ao já existente e pelo sublinhar das diferenças em detrimento das características comuns. Por muito que nos digam que o “paradigma emergente” pós-moderno (não no seu sentido estrito mas no sentido mais amplo de “posterior” ao moderno) se deve basear no fim das certezas e no diálogo, a verdade é que a ferocidade das reações às opiniões discordantes revela bem quão longe está qualquer prática de tolerância. E afirmar que esse paradigma deve constituir-se como “senso comum” pouco explica, podendo deixar-nos receosos quanto ao que isso pode significar em termos práticos.

A instituição de novos “regimes de verdade” ao nível da “microteoria” torna profundamente difícil trabalhar em áreas híbridas, “transfronteiriças” aos campos de saber autoinstituídos, sem que se corra o risco de sofrer fogo cerrado das várias posições entrincheiradas. Que linguagem utilizar? Que conceitos adotar? Que identidade reclamar? Como conseguir sobreviver num contexto, a que por exemplo António Nóvoa, chama “transgressão disciplinar”?

Concretizemos com uma situação particular, que conheço de perto. Estudar a evolução da participação feminina no sistema de ensino português ao longo de um determinado período de tempo (o século XX, digamos) implica conjugar conhecimentos, conceitos, metodologias, de diversos campos do saber, desde a História da Educação aos Estudos Feministas, passando por um largo espectro de outras áreas como a História Social, a História das Ideias Políticas, as Sociologias Política, Histórica e da Educação, a Educação Comparada, os Estudos sobre as Mulheres, os Estudos sobre o Género, as questões da Pedagogia da Igualdade e muitos outros “campos científicos” que, embora partilhem objetivos algo concomitantes, não deixam de ter “identidades”, “linguagens” e “verdades” próprias laboriosamente construídas que muitas vezes, mais ou menos subtilmente, implicam posicionamentos e inviabilizam qualquer hipótese de diálogo.

A harmonização dos contributos oriundos de todas estas áreas num conjunto coerente e articulado implica algo que cada vez existe menos, a saber:

  • Uma “língua franca” para comunicação que todos aceitem e não encarem como ameaça à sua identidade específica e particular.
  • Uma verdadeira atitude de tolerância e de respeito pela diferença que ultrapasse a sua mera formulação teórica, em especial quando não se aplica apenas aos nossos desejos e interesses.
  • Uma reflexão crítica sobre as novas modas que brilham, evitando rápidos alinhamentos identitários como novos micro “regimes de verdade” tão (ou mais) autistas que as velhas metateorias fundadas numa ou outra modalidade de positivismo e que apenas nos vão fechando em celas cada vez menores e com menos aberturas para o exterior.

Infelizmente, tanto a agressividade crítica não fundamentada como o ignorar ostensivo das vozes discordantes, só agravam o isolamento paroquial a que se têm vindo a votar muitas das áreas de especialização não só da História como do próprio conjunto das Ciências Sociais e Humanas, ainda seduzidas pelo brilho retórico do paradigma pós-moderno e incapazes de ultrapassar o seu relativismo, mesmo quando recorrem às mais elaboradas construções teóricas para esconder o vazio do seu conteúdo. Aliás, talvez a decadência do debate de ideias seja consequência direta e inevitável desse mesmo vazio.

Paulo Guinote


Referências

Howard S. Becker – “Theory: The Necessary Evil” in Theory and Concepts in Qualitative Research: Perspectives from the Field (David J. Flinders and Geoffrey E. Mills, eds.) – New York: Teachers College Press, 1993, pp. 218-229.

Atilio Boron – “A Social Theory for the 21st Century?” in Current Sociology, volume 47 (4), Outubro 1999, pp. 47-64.

Michael Crossley – “Bridging Cultures and Traditions in the Reconceptualisation of Comparative and International Education” in Comparative Education, volume 36 (3), 2000, pp. 319-332.

ex-aequo “A Construção dos Estudos sobre as Mulheres em Portugal”, nºs 5 e 6, 2001 e 2001.

Becky Francis e Christine Skelton (eds.) – Investigating Gender. Contyemporary perspectives in education, Buckingham/Philadelphia: open University Press, 2001.

Linda Gordon – “What’s New in Women’s History” in Feminist Studies/Critical Studies, (Teresa de Laurentis, ed.), Bloomington: Indiana UP, 1986, pp. 20-30.

Jennifer Gore – The Struggle for Pedagogies. Critical and Feminist Discourses as Regimes of Truth, London: Routledge, 1993.

M. Hammersley e M. Gomm – “Bias in Social Research” in Sociological Research Online, vol. 2, no. 1,1997 (http://www.socresonline.org.uk/socresonline/2/1/2.html)

Rom Harré – “Social Reality and the Myth of Social Structure” in European Journal of Social Theor, volume 5 (1), 2002, PP. 111-123.

Mark Jackson – “The Ethical Space of Historiography” in Journal of Historical Sociology, volume 14 (4), Dezembro 2001, pp. 467-480.

Amin Maalouf – Les Identités meurtrières, Paris: Grasset, 1998.

Doreen Massey – “Negotiating Disciplinary Boundaries” in Current Sociology, volume 47 (4), Outubro 1999, pp. 5-12.

Raymond Morrow e Carlos Torres – Teoria Social e Educação, Porto: Afrontamento, 1997.

António Nóvoa – Histoire & Comparaison, Lisboa: Educa, 1998.

Rolland Paulston – “Mapping Comparative Education after Postmodernity” in Comparative Education Review, volume 43 (4), Novembro 1999, pp. 437-463.

Karl Popper – The Poverty of Historicism, London/New York: Routledge, 2002.

Carlos A. Aguirre Rojas – “Rethinking Current Social Sciences: the Case of Historical Discourse in the History of Modernity” in Journal of Worls-Systems Research, volume VI (3), Outono/Inverno 2000, pp. 750-766.

Boaventura S. Santos – Um Discurso sobre as Ciências, Porto: Afrontamento, 1987.

Immanuel Wallerstein – “The End of Certainties in the Social Sciences”, comunicação ao seminário Conceptos em Ciencias y Humanidades (Mexico City, 1998).

A APH - Associação de Professores de História é uma associação científico‑pedagógica de professores de História de todos os ciclos e graus de ensino.

Contactos Gerais

Telefone

(+351) 217 647 201
(chamada para rede fixa nacional)

Telemóvel

(+351) 964 952 357
(chamada para rede móvel nacional)

Email

secretariado@aph.pt