Ana Cristina Araújo

Nos inícios do século, o termo mentalidade não fazia parte do vocabulário dos historiadores. Na linguagem comum, a palavra era usada para exprimir atitudes e “formas de espírito”, um pouco à maneira da Weltanschauung alemã. Proust emprega-a exatamente com este sentido no célebre romance Em Busca do Tempo Perdido. Pouco depois, o termo adquire um carácter marcadamente denonativo na obra La mentalité primitive (1922) do etnólogo Lévy Bruhl que dele se serve para fundamentar a existência de sistemas culturais subalternos através da dominância de comportamentos pré-lógicos e emocionais. A reabilitação científica da noção de mentalidade é paralelamente empreendida, no âmbito da Psicologia, por Blondel e H. Wallon. Sensivelmente na mesma altura, Marc Bloch, G. Lefebvre e Lucien Febvre alargam as fronteiras da História Social ao domínio das representações coletivas e, de modo explícito, às “maneiras de sentir e de pensar” de diferentes épocas históricas. O ressurgimento, no final dos anos cinquenta, dos estudos consagrados a esta esfera residual do passado, em que o social e o cultural aparecem intimamente interligados, assinala-se, em França, com Philippe Ariès, George Duby, Robert Mandrou e Jacques Le Goff. Segundo Duby, na época, a designação mentalidade ajustava-se à necessidade de explicar o que de mais fundo persiste e dá sentido à vida material das sociedades, ou seja, as ideias que os indivíduos formam das suas condições de existência que, como salienta, “comandam de forma imperativa a organização e o destino dos grupos humanos”.

As fontes deste tipo de História, desde logo convertida em motivo de atração editorial, alargam-se extraordinariamente. Da literatura ao cemitério, das obras de piedade aos manuais de confissão, dos registos judiciais aos testamentos, dos documentos de estado civil aos que traem os segredos da família, das palavras com imagens às imagens sem palavras, tudo passa a estar subordinado ao crivo da crítica e ao poder da “imaginação” do historiador.

Apesar de imperfeitamente delimitada e conceptualizada, a História das Mentalidades impõe-se pelas suas orientações e perspetivas. Salientando alguns dos seus mais recentes desenvolvimentos, poderíamos dizer que ela reconduz a atenção do historiador para o espaço aberto e difuso do quotidiano; explora gestos e saberes socializados que aproximam os homens, independentemente da sua condição social, de uma mesma mundividência; valoriza as categorias do espaço e do tempo que enformam as certezas irrefletidas do maior número; interroga as formas de comunicação que se podem estabelecer entre sensibilidades e padrões de cultura diferenciados numa mesma sociedade; tende a inscrever a tensão entre a conservação e a mudança nas fronteiras dos diversos imaginários sociais; faz depender as formas de linguagem e de perceção da realidade exterior, do jogo múltiplo dos afetos, da emoção e da crença. Enfim, põe em relevo “o que é concebido e sentido, o campo da inteligência e do afetivo”, segundo a fórmula sintética de Robert Mandrou.

Território obscuro e particularmente atraente, a História das Mentalidades – designação lançada pela Escola dos Annales e sem equivalente na língua inglesa – tem contribuído assim para alargar o inquérito dos historiadores, desfazendo equívocos, criando novos problemas e abrindo caminho ao estudo dos traços mais desvanecidos, quase apagados, da vida humana ao longo dos tempos. Traços forjados na intimidade, envoltos em segredo e captados no limiar do privado e do público, do sagrado e do profano, da norma e do conflito. Com alguma nitidez são eles que preenchem o essencial das Histórias do corpo, da doença, da morte, da sexualidade, da infância, da mulher, da festa, da leitura, da crença, da superstição, da fantasia, do medo, da infâmia, do castigo, da alimentação e de muitos outros campos significantes da nossa cultura.

Ana Cristina Araújo
(Lisboa,2/10/1999)

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